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domingo, 27 de fevereiro de 2011

A introdução e as primeiras notas

Acho que o melhor meio de começar o blog seria pelas minhas primeiras anotações sobre a Craco, que aconteceram 2 dias após o início do meu trabalho como médico da região, dentro de uma proposta de PSF voltada a moradores de rua que eram mais (ou menos) que moradores de rua: eram moradores de rua e usuários de crack. Algumas coisas do que escrevi já não são minha opinião atual, mas o melhor modo de entender o problema da craco hoje (problema que posso falar que participo e tenho minha parcela de culpa e glória e fracasso e algumas pouquíssimas vitórias, insuficientes para que eu tenha um sono livre de pesadelos) é voltar ao início desses quase sete meses, num lugar onde cada dia vale por dez anos. E te envelhece dez anos também. Aí vai o texto, na íntegra:


"Na craco, tudo bem até agora. Psicodrama (sociodrama, como disseram) no período da manhã. Não entendi bem no começo, um psiquiatra estranho que perguntou meu nome quando cheguei com o pessoal da equipe técnica, mas não deu o nome dele de volta. Esquisito.
Começamos com uma dinâmica estúpida (eu achei), de ficar andando pra lá e pra cá num salão enorme. De tempo em tempo, virava-se de sentido, conforme ele mandava. Não era permitido conversas. Me senti desconfortável e meio de saco cheio, aquela vontade de ser meio hostil tentando escapar do meu controle. Olhava as pessoas. Agentes comunitários na maioria, semblantes entre divertidos com a situação e algo tensos na maioria. Ainda estavam abalados pela desapropriação de uma área da craco que tinha acontecido alguns dias antes. Desapropriação no sentido mais cru da palavra, as pessoas foram simplesmente postas na rua, sem opção de abrigo. Os menores (termo horrível, eram crianças e adolescentes) foram retirados e colocados em ônibus para um tal de CAPS I, acho que o I é de infantil. A situação havia sido tensa, a polícia e a guarda municipal prontas para usarem a força, os agentes com medo de que seus protegidos fossem machucados, mas com mais medo ainda de serem eles próprios afetados. A imprensa também estava lá, urubus que são, piorando a situação ainda mais.
No final, as pessoas foram retiradas, é claro. Voltaram para a rua,para a realidade da qual tinham fugido por algum tempo. Voltaram para nós, seus cuidadores. Pelo que constato, assustadoramente, os únicos cuidadores.
A essa situação somou-se outra: pela chuva de ontem a unidade de saúde havia sido alagada, com esgoto, e os funcionários fizeram protesto na frente do lugar antes de irem ao sociodrama. Em suma, eu estava entre pessoas com medo. Umas aparentavam, outras escondiam-se sob conversas triviais nas quais se percebia a tensão.
Nisso começamos o "sociodrama". Depois de andarmos em círculos como um bando de bois, o psiquiatra  pediu que déssemos a mão a quem estivesse mais próximo e andássemos em pares, um conduzindo o outro. Me senti um idiota maior ainda. Próxima fase, apresentarmo-nos uns aos outros, e em seguida falarmos uma palavra sobre o que sentíamos. Me abstive. Só se ouvia "tensão", "stress", impotência, "frustração". Alguém falou "corinthians". Depois o cara quis que falássemos o que estávamos sentindo, mais especificamente. Os mesmos assuntos, todos relativos à situação da desapropriação. Me abstive, mas ele me convidou.
Fui sincero. Disse que não estava entendendo o sentido daquilo tudo, que havia começado há dois dias e que, o senhor me desculpe, mas nem sei seu nome nem quem você é. Alguns risos nervosos, uns olhares meio tensos, ele me olhou torto e aparentemente contrariado. Tentou explicar que era um psiquiatra, que se chamava Fulano de tal ou coisa que o valha, e que eu entenderia até o final do processo pra que servia aquilo tudo. Satisfeito?,ele me perguntou. Dei de ombros, ele suspirou e voltou à dinâmica. Agora escolhíamos uma pessoa e conversávamos sobre suas angústias. Como era de se esperar, ouvi um monte de angústias e não falei nenhuma das minhas. Talvez porque não estivesse angustiado com nada mesmo. Talvez eles precisassem mais do que eu. Uma tinha batido o carro no 1o dia de trabalho (justamente aquele dia), uma enfermeira que me pareceu alguém prestes a gritar, chorar e se jogar na frente de um trem. Apenas ouvi e balançava a cabeça, desconfortável por estar ouvindo alguém que nem conhecia se abrir assim pra mim.
Depois, veio o drama, um corredor polonês que de um lado simulava os policias da ocupação e do outro os desapropriados. Tínhamos que passar pelo meio, sentindo a pressão de ambos os lados. Achei que ia ser uma bosta como tudo até agora, mas quando passei senti medo. Medo. Quando o cara perguntou o que senti, inventei alguma outra coisa. Senti pela primeira vez o que seria trabalhar na cracolandia, junto com os viciados, prostitutas, marginalizados. Do lado DELES. Contra a polícia. Éramos iguais, mas nós tínhamos pra onde voltar no final do dia e não andávamos com um pipe no bolso fora da realidade há anos, como eles. Éramos iguais, mas não íamos ao posto pedir xilocaína gel pra passar no ânus cheio de feridas de sífilis pra aguentar continuar fazendo programa. Iguais, mas não éramos acordados com um balde de água gelada pelos gcm's de manhã cedo. No final, não estávamos tão distantes, nem um pouco. A revolta contra a sociedade e contra o estado das coisas era lugar comum.
Resumo da ópera: eu estava ali porque ali era a minha sombra, no sentido psicanalítico da coisa; quer dizer, onde mais eu poderia estar senão ali, com aqueles que são mais semelhantes a mim mesmo do que qualquer  outra pessoa..."
(Setembro de 2010)